Marilice Costi
Acorda, recolhe as roupas
sujas. Enquanto esquenta a água, liga a máquina de lavar. Passa o café, aquece
o leite, chama os filhos, lava o rosto, veste-se. Eles acordam e reclamam do
sonho interrompido. Ela alimenta-se com rapidez, lava a louça, põe no secador,
escova seus dentes, passa creme no rosto, um blush e um batom, põe os óculos de grau, veste os filhos,
alcança a mamadeira ao menor e estende a roupa. Olha o relógio: o tempo corre.
Reclama, tenho pressa, vamos, a mãe vai receber xingão. Corre para a porta, recebe o jornal, tira o almoço do
freezer¸ não esqueçam a
mochila, o lanche, o casaco, pode esfriar. Bate a porta da rua, aperta o botão
e aguarda o elevador. Desce reclamando do cansaço, da noite maldormida e do filho que
sempre esquece algo e tem que voltar. No hall do prédio, abre a caixa de correspondência, recolhe as
contas enquanto as crianças entram no carro que ela retira da garagem sem
aquecer o motor. Deixa os filhos na escola, na creche, um beijo, até depois. A
tia pede material pro
trabalhinho, pra higiene, para preparar a festa de Natal. Ela volta ao veículo
com a lista e dirige-se ao trabalho. No estacionamento, desliga o motor, reúne
o seu lanche, o casaco, a bolsa com muitos documentos, pouco dinheiro, moedas – pouco valem – lapiseiras, caneta, carnês,
boletos a debitar todo mês, agenda para não esquecer o médico, o dentista, o
aniversário dos amigos, o vencimento das contas, o controle do saldo bancário,
a poupança cada dia menor, o remédio que falta, o problema técnico que precisa
resolver, a visita que virá, a carta que responderá, o horário da fisioterapia
da vovó e o dia do voto...
Sobe as escadas da
empresa, dirige-se ao relógio-ponto e lembra que não comprou os produtos de
limpeza que faltam e que a chave não ficou sob o tapete de entrada. Na sua
sala, pega o telefone com linha sempre difícil, liga para a síndica que chama a
zeladora e autoriza arrombar a porta para a faxineira entrar, que sem ela não
dá! Já pede que estenda a roupa e que limpe a casa do jeito que puder, se
possível, faça uma salada para a janta. Então senta à sua mesa e vê o trabalho.
Muito, sempre. As pessoas na rua são formigas que correm atrás do tempo, do
dinheiro, do nem sei o que e o vidro da janela está sujo. Põe os olhos no papel
e escreve desenha, apaga, revê, interpreta, descreve, resolve, escreve,
desenha, apaga, será esta a melhor alternativa? Será aqui ou ali, será antes ou
depois e ainda escuta a queixa do chefe porque pensa muito antes de fazer. Olha
para a rua: chove. As crianças não levaram capa nem guarda-chuva. Liga para o
colégio, vou buscá-las, que aguardem se o tempo
não melhorar. Retorna ao trabalho, toca o telefone, é pra ela. Sai do
seu canto para a outra sala, engano. O chefe grita, foi tu que pediste
pistolão? Outro engano. Logo ela... Volta ao raciocínio, às suas contas, aos
detalhes. O telefone de novo. Corre, se continuar assim, não termino hoje, doem
os joelhos. É um vendedor, marca hora, anda mais quarenta passos, um colega
pede ajuda, pára e depois retoma o seu desenho, de novo. A manhã segue. Os
colegas saem, ela continua, precisa adiantar. Almoço depois, avisa em casa,
marido não aguarda, não vai dar. Aproveita o silêncio. O projeto anda. Olha o
relógio, já é hora, liga ao médico,
à amiga que adoeceu, desce as
escadas e dirige-se ao seu outro emprego onde escreve, calcula, negocia,
redige, autoriza a fatura, reclama, atende a mil e um telefonemas, liga para cinco mil e um fornecedores, atende reclamações, suporta o frio ou calor
ou o cigarro dos outros, o mau humor da colega ao lado, do chefe acima, da
mulher do chefe, da secretária do chefe. A tarde finda, graças a Deus, puxa a
persiana, espirra o pólen primaveril que entra com o vento e junta seus papéis
que voaram. Organiza-os novamente. A mesa sempre limpa para o outro dia.
Pega as chaves do
carro, liga o motor. Agora, tem tempo. Tempo! Enquanto o motor aquece, lê o
jornal, notícias de ontem, – é fim de tarde, come uma fruta que a cabeça está
tonta – cuida a hipoglicemia. Uma dorzinha desponta, pega um comprimido, cafeína-dipirona-paracetamol – coquetel das
enxaquecas e segue o trânsito louco onde trava, buzina, atura desaforo e onde
procura sintonizar na AM (a FM não funciona) uma música suportável, calmante, tranquilizante e o que sobra é a
Rádio da Universidade a tocar Prokofiev – preferiria Tchaikovski ou valsas de Strauss. Suporta aquela loucura que é o rush no final da tarde. O
vento que sopra, o cheiro que vem da fábrica de celulose agora não poluente
porque nacional, lhe infesta as narinas. Aguenta a náusea porque precisa buscar os filhos, os amigos dos
filhos, a carona, o trânsito de novo. As crianças, enfim, em casa. Hora do
banho, da janta, da novela das sete, Jornal Nacional, a das oito e então o
marido chega cansado, quer a ducha, a cueca e a toalha à mão. Ele deita no sofá
frente à tevê a se queixar do dia. Ela, os meninos, os temas, a louça do
jantar. Confere o serviço da faxineira sempre os cantos sujos, dobra a roupa
seca, separa as que precisam do ferro e guarda as demais. Então senta e toma
apenas o café e o pãozinho com salada. Perdeu a fome. Beija os filhos, hora de
dormir, bronqueia, discute com os maiores. Parem, reclama, estou cansada, diz
que vai largar um emprego, não dá mais, estressada, não suporta tudo aquilo, se
eu morrer vocês vão ver como é, mas não quer a morte, quer só o descanso,
pernas para o ar, o pôr-do-sol e a chuva, as estrelas, olhar o mundo, poder
falar sem pressa, aturar melhor seus adolescentes, não ter que cobrar, não
brigar. Vou parar, diz a si mesma como um grito.
Depois do banho, a
cama e a insônia, a dor no corpo e o ronco do marido que mais parece um motor
atrapalhando o relacionamento já difícil. Amanhã eu paro.
Às duas da manhã,
enfim, capota o corpo, o sono nasce e morre pela manhã, quando vem a conta da
luz, do telefone, do condomínio, do IPTU, da água, da assinatura do jornal com
a notícia da gasolina, que mais uma vez subiu.
(Texto Premiado – Concurso Histórias do
Trabalho e publicado no livro: COSTI,
Marilice. Tempos Frágeis. Porto Alegre: Movimento, 2009.)