Alice Sana Costi recém terminara
o curso de Corte e Costura quando casou com meu pai. Fez o próprio enxoval,
exposto no dia da formatura. Exibia a foto com orgulho pelo tanto que tinha
trabalhado e pelas coisas lindas que tinha inventado.
Era também professora
primária, mas papai pediu que parasse de lecionar, pois ela seria muito
necessária na administração da casa e na vida familiar futura.
As costuras
Nossas roupas e as coisas com
tecidos da casa eram feitas por Mamãe. Ela comprava todo necessário. As lojas
ficavam longe da nossa casa e ela precisava de uma lista de itens porque não
poderia voltar depois para trocar ou buscar algo que faltasse. Muitas
vezes, estive junto no balcão da loja, o comércio de tecidos dos judeus no
centro da cidade e a observava.
Quando ela escolhia o material,
ela imaginava o que faria e havia prazer em seu olhar ao escolher a cor para
combinar com os olhos da filha ou com o tipo mais alta ou mais baixa, mais
magra ou mais gordinha. Percal para os lençóis, linho para roupas, lã, algodão,
seda, cetim e o poliéster, que com o tempo se percebeu que era fácil para
passar, mas que pegava uma asa... ninguém aguentava o fedor. E como era difícil
retirar aquele encruado.
Em nossa casa nada era colocado fora. Não havia consumismo. Havia sustentabilidade sem que nunca tivéssemos dito esta palavra. Economizava-se em tudo.
Alice poderia comprar vários
metros e, vez ou outra, talvez a peça toda para regatear no preço.
Às vezes, mudavam os planos. O tecido não era adequado para a pessoa ou para a
utilidade que buscava. E o que era para ter sido lençol do casal, papai não
quis. E assim o tecido ia para a prateleira das roupas a reformar. Logo a
tesoura passaria por ali transformando lençol em chambres para as meninas e
para ela.
As roupas ficavam perfeitas durante
muito tempo, pois eram cuidadas no lavar, não havia máquinas, raramente ficavam
manchadas. Para criar novas peças havia um processo: desmanchar com cuidados todas
as costuras, lavar e passar para assim utilizar ao máximo. E com as sobras, ela
costurava calções para os netos e, finalmente, roupas para as bonecas das
meninas. E assim, entre cortes novos e roupas desfeitas, ela seguia as suas
artes.
Eu acompanhava seu trabalho muitas vezes após os temas escolares e ficava
ao seu redor pedindo que inventasse coisas para eu fazer, minha hiperatividade
não permitia paradeiro. Em algumas tardes, ela ia descansar e me fazia dormir
contando histórias. Outras, ela pedia que eu enrolasse os carretéis com linhas
de muitas cores, organizasse as gavetas da máquina de costura.
Lembro-me de sua régua de costura, dos moldes em papel de pão, dos gizes e da tesoura de picotar, que ficou comigo após sua morte. Eu aprendi a selecionar cada coisa devido à sua importância e uso: agulhas,
botões com seus tipos e tamanhos, linhas especiais, elásticos e a tesoura, que
sempre deveria estar no mesmo lugar. Meus pais detestavam precisar dela e não encontrar
rapidamente. Cada coisa precisava estar sempre em seu lugar!
Os godês eram pra matar! A
marcação das barras dos vestidos era uma tortura, pois eu tinha que interromper
o que eu fazia para passar tempos intermináveis descalça sobre a mesa da sala a
rodar lentamente. Ela media e media para marcar com muitos alfinetes em
carreirinha a dar direção da dobra para a barra ser marcada, cortada
proporcionalmente e receber o ponto certo de costura.
Trabalhos de Alice (manta) e casaco com apoio da costureira Délia. |
Com três filhas meninas, mulher
de empresário, precisavam todos estar sempre impecáveis. E na moda! Ainda
mais na missa das dez de domingo.
Quando viajava a Porto Alegre, passava vistas às vitrines da Casa Louro e
comprava burdas, que traziam a moda europeia de cortes firmes e marcados do
estilo alemão ou outras revistas que comprava na Galeria Chaves, na revistaria ao
descer a escadaria seguindo em direção à estação dos bondes na Praça XV, a do
Chalé.
Ela organizava o quartinho da
costura com certa frequência e sempre encontrava pilhas de roupas para reformar
e os retalhos de tecidos grossos, sobras de roupas de inverno ou de pernas de
calças jeans. Jeans era fácil, pois conseguia fazer shorts para os netos usarem
na praia.
A sustentabilidade
As filhas casaram e os netos cresceram.
As sobras passaram a lhe incomodar. Certo dia, uma nova invenção: sacolas para
ir à feira. A utilidade era fundamental em suas artes.
Naqueles tempos, não eram fornecidas as sacolas que passariam a ser um problema
grave ambiental. Tudo era colocado em caixas ou embrulhado em papel Kraft.
Sacolas de tecido seriam úteis para muitas coisas e também para buscar pão.
Mas com o tempo, as sacolas
sobravam. Além disso, havia recortes de tecidos muito bons e que não poderiam
ser usados dessa forma. Um dia, eu estava em sua casa e ela colocou os tais
retalhos dos quais queria se livrar sobre o grosso oleado de proteção da mesa
de refeições.
– Vou ter inventar alguma coisa
com isto. Me incomoda encher os armários com coisas sem uso – e olhou para mim,
sorridente e apreensiva... Era seu momento de prospecção... algo ocorreria. Começava
riscando em qualquer papel e logo passava a mão na trena, fazia os moldes e
começava a assobiar observando se o seio direito estava com os alfinetes que
viria a precisar.
Mamãe tirara o seio aos 37 anos e
usava uma prótese de silicone que enchia o soutien, parece uma teta de verdade,
ela dizia sorrindo. Papai mandara buscar na Alemanha substituindo um enchimento
com meias de nylon furadas que ela fazia. A prótese para o soutien era sua
almofada para por os alfinetes.
Então, Fiat lux!
– Se eu fizer bolsas, tu
usarias? – e olhou para mim aguardando resposta.
Eu parei para pensar um pouco...
– Depende, mãe, se não for muito
esquisita para minha idade... – eu não gostava de coisas com “cara de
adultos”... Naquele tempo, não se dizia a palavra idoso com a importância que
se diz hoje.
Alice passou a se divertir
compondo pedaços que combinavam entre si, degradês, muitos modos. E criou
também diversas alças algumas de macramê. Ficaram lindas. Era moda usar
tecidos, roupas de jeans, coisas diferentes.
As bolsas fizeram sucesso na
família e com os amigos. E ela passou a presentear as pessoas. Eram realmente
únicas!
Nós, as filhas, ficamos com as
mais singelas, pois as melhores ficavam separadas para dar.
Seguimos
nossas vidas sem nos darmos conta de tantos ensinamentos de Alice apenas no
fazer aquelas bolsas.
Lembro especialmente hoje, no dia
das mães. Não eram bolsas quaisquer. Eram as “bolsas da minha mãe”, uma mulher
avançada em seu tempo, que tinha tudo para ser estilista de modas, uma
empreendedora e nunca deixou de ser professora. Ensinava bordados, crochê,
tricô, alinhavos, arremates a qualquer pessoa que quisesse aprender. Todas as
pessoas que passaram pela nossa casa confirmarão isso. Bastava quererem
aprender, que ela se dedicava.
Esses seus valores foram
distribuídos entre seus descendentes.
Eu? Fiz apenas um vestido na
década de 80, que não tenho coragem de me desfazer. Foi um trabalhão. Nem
acredito que passei tantas horas fazendo tanta coisa à mão. Usei só uma vez em
uma festa.
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