Homenagem ao meu pai
CASO PROIBIDO
Era
um caso de amor profundo, uma questão de raízes, um tipo de sentimento infinito
até. Trinta e três anos de paixão! Ele, a trezentos quilômetros de distância,
seu esteio, exemplo, segurança. Ela, frágil, mas corajosa, débil e às vezes inconsequente
pela vontade de viver e saltar barreiras que a idade impunha. Matilde o
carregava em seu coração num desejo de posse avassalador. Ela amava o seu
caminhar, o gesto dele pôr os braços para trás, o assopro quando perdia a
paciência e ria-se dos impropérios que Lauro esbravejava em sua língua de
origem. Ela desconhecia em parte os significados. Mas seus signos eram claros:
queria tudo em ordem, a mesa servida no horário exato, a comida com tempero
suave, o silêncio na hora da refeição, o cafezinho depois junto ao cigarro
filado. No final do dia, somavam mais de um maço. O médico proibira, ele não
comprava mais.
Quando
Matilde estava passando um tempo com ele, ao escutar o apito da fábrica, ia
buscá-lo. Cansado do trabalho, ele demonstrava alívio. Era um momento de êxtase
para ela: o caminhar lento de quem lidara o dia inteiro, o modo de atirar o
casaco sobre o ombro direito, as muitas chaves da fábrica no molho preso ao
cinto, o ouvir o próprio ruído ecoando do soalho nos barrotes, o verificar
portas e janelas, os conselhos dados ao vigilante na guarita e, antes de cruzar
o portão de ferro, o “não se esqueça de alimentar e dar de beber aos cães”.
Eles
continuavam pela calçada coberta de terra seca daqueles dias de verão que
margeava a avenida de paralelepípedos que se perdia atrás da Brigada Militar. E
viam o pôr-do-sol. Ele a olhava com cara marota de menino adolescente e
sorrindo dava-lhe um sonoro beijo espichando os lábios para alcançar sua face.
Chegavam em casa aos latidos do Duque. Havia o costume de limpar os pés na
grama, antes de ultrapassar a soleira. O chimarrão os esperava após o banho,
quando ele mostrava seu recato. Nunca se vestia na frente ela. Apenas quando ia
ao sanitário, não fechava a porta. Ela ouvia o som de um jato e ficava imaginando
como poderia acertar no escuro. O lugar nunca cheirava mal. Era muito
cuidadoso, sempre lavava as mãos ao chegar. Depois da janta, ela aguardava o
momento que seus olhos diziam: pode vir. Sentava no seu colo, então, lia o
jornal em voz alta. Ele escutava e marcava as notícias para ela recortar depois.
Era o que Matilde fazia enquanto durava a sesta. Lauro sempre descansava após
as refeições, como descansa agora, naquela cadeira do papai, para sempre.
Conto publicado no livro: COSTI, Marilice. Tempos Frágeis. Porto Alegre: Movimento, 2009.