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29 de mai. de 2016

Memórias de Marilice: MEU TIO DAVID (in memoriam)

Eu escrevi desde menina... e neste tempo todo, raramente enviei meu material para algum concurso, até o instante em que me armei de coragem e entreguei um conto para o meu professor - Antonio Hohlfeldt. Eu  me sentia muito insegura. No entanto, daquela vez, eu ouvi: Está muito bom, Marilice, você escreve bem. Envie para o concurso de Alegrete. 
Tratei de me informar e enviei o conto. Foi daí em frente que não parei mais...

Eu tinha receio em publicar meus primeiros poemas. Como reagiriam familiares como ele, meu tio católico praticante? Os poemas eróticos na década de 80! O que diriam de mim meus pais? 

Comentei com José Edil de Lima Alves, crítico literário, jurado no Concurso Nacional de Contos Mário Quintana, evento que compareci quando da entrega dos prêmios. Fui o 1º lugar. O meu conto! 

Ao voltarmos, meu filho Demétrio e eu, em uma viagem chuvosa de sete horas, tivemos a companhia do poeta homenageado Quintana, que fumava sem parar dentro de uma Kombi da Prefeitura, que vinha com os vidros vinham fechados por causa da chuva intensa. 
Nesse tempo conheci também José Edil, que se tornou meu amigo. Ele me perguntou se eu teria outros textos, gostaria de ler o que eu escrevera até então. 
marcamos e lhe entreguei um conjunto de poemas. Sua orientação era publicar. Procure a Movimento. Leu outros textos e me deu uma lição: eu tinha 5% de tempo de criação. Agora era completar os demais 95%, de muito esforço, o tempo de transpiração. Insegura, comentei que não sabia como enfrentar o olhar crítico de minha família. Naquele tempo não se publicava  sobre erotismo como hoje. Edil me indicou muito seguro a leitura da Bíblia, os poemas de Salomão. disse-me, leia o “Cântico dos Cânticos”. Com isso ganhei coragem. 

Sua leitura cuidadosa me deu ânimo para levar meu livro com os tais poemas de amor e dor. Fui orientada por um editor experiente e sério em Literatura. E ali tive muitas lições, fundamentais. Discutimos tudo até o ponto no final dos poemas... Lembro como se fosse hoje, do seu olhar de professor ao me dar retorno sobre o livro, que seria publicado!

O livro “Mulher Ponto Inicial”  foi editado pela Editora Movimento. Recebi muitas cartas, telegramas, bilhetes, cartões, que me causaram surpresa. O mais surpreendente foi comparecerem 90 pessoas no lançamento, entre elas, meu tio David e minha tia Domingas, com quem tivera doze filhos. Sempre companheiros, foram os primeiros a chegar na Casa de Portugal, local do lançamento, e os últimos a sair. Religiosos firmes tanto quanto foi petista doente, lia muito, parava com o olhar longe pensando, argumentava com classe. Hoje ele estaria muito triste, indignado com a nossa política, mas teria algo a mais para me dizer, como por exemplo: estamos num outro ciclo, seria bom implodir o Congresso Nacional... e riria...no entanto... me diria algo otimista... teria algum alento a dar.






Esse tio, irmão de minha avó materna, foi marcante em minha vida: foi meu cuidador. Era homeopata. Observava-me sempre sorrindo e, dessa forma, penetrava em mim profundamente, queria as minhas dores para as aliviar. Perguntava como eu me sentia, como ia a minha vida, o que andava fazendo, se andava irritada, deprimida, quais os meus alimentos preferidos e indesejados, os meus desejos e sentimentos. 
Depois, abria aquele livrão e ia de lá para cá e de cá para lá parecendo saber decor seu conteúdo. E, de repente, fechava o monstro pesado com o mesmo barulho dos grandes dicionários e saia do consultório. Voltava pouco depois com suas poções mágicas. Pacotinhos muito pequenos com pozinhos brancos, que ele mesmo preparava: o meu medicamento homeopático.

Tio David comprou um exemplar do Mulher Ponto Inicial, escolheu um lugar para se acomodar entre os livros e ficou folheando. Depois comprou mais dez. 

O que pensara sobre meus poemas? Ficara feliz, mas muito curiosa. Ele conhecia a Bíblia onde os seios são como taças para acolher o vinho... 
Lembro com carinho do tempo em que passou sorrindo (o seu normal) e me observando. E nada de comentar meus poemas. E passou a ser meu leitor, presente em todos os demais lançamentos de meus livros (Clichês domésticos, Como controlar os lobos?) sempre adquirindo mais de um exemplar. 

Seu rosto sorridente foi um registro importante de minha vida, talvez por isso eu me identifique tanto com ele, porque gosto muito de sorrir. 


Como era bom quando vinha me visitar! Sempre vestindo terno e gravata, usava chapéu. Com os dentes sempre à mostra, vinha com a alegria da aceitação dos caminhos. Eu, saudosa de meus pais, ficava com o coração amanhecido a pássaros. Tão raras as visitas de parentes... Os meus, sempre distantes.

Sua risada era marcante nos velórios. Isso mesmo! Risadas baixas e contidas muitas vezes. “Psiu! Estamos com o morto ao lado e ele poderá acordar! Hehehe...” Apesar de ter surdez, como outros irmãos, ele se fazia entender muito bem (e cursara Medicina após os 60 anos para continuar a exercer a Homeopatia). Eu tentava sempre ficar perto, considerava as conversas masculinas sobre filosofia e política mais interessantes que as das mulheres, filhos, forno e fogão. “A morte encerra o período de convivência com aquele que está ali ao lado e nós estamos vivos”, dizia rindo-se. Sempre valorizando a vida.
Será que esse é um dos motivos pelos quais meus meus lutos não costumam durar muito. Deve ser por aprender sobre a vida de quem fica e porque minha mãe, quando me via chorar desesperadamente pela morte de algum de meus animais de estimação, dava-me outro logo, não suportava meu desespero. Tive terapeutas que afirmavam que não eu não sabia lidar com as perdas. História! Nada disso! Aprendi a lidar com perdas sim! Aprendi que a vida continua e que é um ciclo. Por isso, falo da morte com tranquilidade e surpreendo com isso. Poderei chorar um dia inteiro de dor, mas sairei daquilo. Acho mais difícil administrar a dor física contínua do que a dor do nunca mais.

Os irmãos de meu tio, Mário e Ermínio, juntavam-se a ele logo ao chegar ao cemitério. Tio Mário tratava de pessoas utilizando pêndulos e fotografias. E eu achava aquilo hilário. Ele se irritava com as minhas dúvidas quanto à sua seriedade, com as gozações do irmão David... Tio Ermínio ria junto. Entre os três, na religião, Ermínio era o mais conservador. Mas tudo virava brincadeira, tendo que se afastarem do morto, indo para o lado de fora da capela. Ali, as pessoas se abraçavam  a quem chegava e despediam-se de quem ia ser visto só no próximo casamento ou em outro velório, a família era grande.

Velórios tornou-se um local especial para mim. E foi com esse tema que escrevi o conto premiado. Foi também o lugar da farra dos irmãos. Tínhamos às vezes que conter o riso ao levar um pito de alguém presente. E tio David dizia: "Ele está morto...não escuta..." Os três irmãos tinham uma peculiaridade. Quando não queriam ouvir, mostravam o aparelho auditivo nos ouvidos e diziam, "não estou ouvindo bem". 

Todos sabiam que aqueles irmãos eram da pá virada. Óbvio era que aqueles enterros não eram de uma pessoa muito próxima. O que se percebia ali era mais do que um momento para atualizarem suas brincadeiras, tinham sempre motivos para rir, podia ser do morto ou de algo que viveram juntos, de muitas coisas a mais. Pura alegria pelo reencontro.

Eu, jovem, no meio dos homens das piadas, ficava no mínimo esquisito. Meu pai eventualmente me chamava, era mais sisudo e em locais como aquele, não admitia rir assim. Mas eu preferia ficar longe do morto. Todos os mortos viram santos na hora do fim.. Eu sempre observadora, via o quanto aquilo tudo se enrolava em fumaça que escondia o comportamento da pessoa nem sempre tão bom assim... 

Suas piadas quebravam o gelo das longas esperas antes de por o caixão na cova... 

Deve ser por todos esses motivos que passei a valorizar tanto o momento dos velórios, pois é quando as histórias são mais detalhadas como a fiar um terço, quando se conhece melhor e mais completamente a vida das pessoas. Lugar do reencontro de abraços e lembranças, de calor humano tantas vezes necessário em nosso cotidiano, mas tão distante. Lugar de saber quem casou, quem teve filhos, como eles cresceram... por onde andam, tanto que as famílias grandes se perdem por este mundão. 

Eu já estava com a ideia de escrever sobre um velório quando redigi o conto premiado? Creio que não. O conto "Convite para a Missa de 7º Dia" foi um título que saltou do jornal. 
A história era real? O conto registrou parte de minha vida na capital, minha dor e eterna saudade que eu teria do Dr. Celso Aquino, meu neurologista desde os meus três anos. Tanto me acolheu.

Muito tempo depois, perdi tio David. Mas a lembrança de seu carinho permanece. Foi tão bom ganhar seus abraços, seu olhar carinhoso e cuidados, amor que dedicava à menor da Alice, sua sobrinha e minha mãe. 

Dentro de mim, sigo com o que mais foi mais caro em nossa amizade: o seu sorriso, a sua escuta atenta, o seu acolhimento, hoje misturados à minha eterna saudade.


Escrito por Marilice Costi em 29/05/2016


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